A boa Angola que eu vi (I)
Umas mãos finas, delineadas de ossos, elevavam-se sobre o vidro do carro: acompanhavam o corpo frágil de uns olhos, cor de mel, pequeninos. As pálpebras pesavam-lhe o olhar nítido, luzidio.
Era uma voz arrastada: “ Eu só quero uma sardinha. Por favor, dá só dinheiro para uma sardinha, gritava à janela, aquele rapaz, alto e magro, de cabelo preto, raso, e pele batida; chinelos de enfiar no dedo – que lhe ficavam pequenos-, calças de ganga, justas, e t-shirt verde, sporting, um tamanho abaixo do seu.
Os outros meninos, que aguardavam à porta do restaurante com os alguidares de quitetas (bivalve, tipo conquilha, muito apreciado em Angola), que tinham trazido da praia Morena, para vender, estavam boquiabertos, de silêncio, de olhares suspensos sobre o rapaz que gritava assim.
Não sei o que eles pensavam; a mim, o rapaz das mãos finas, trazia-me aflição; pois, talvez, lhe tenha notado a ávida vontade, fácil e tentadora, de não sentir a vida.
Não tinhamos comida para lhe dar: momentos antes, quando saímos do restaurante, vimos os meninos bons a comer esparguete, das sobras – que era pouca. O meu filho ficou suspenso naquele momento a mirá-los; foi ao carro procurar a mochila e tirou a comida que havia; chegou-se e distribuiu pães com manteiga e bolachas maria pelos seus amigos-criança. “Têm fome e querem comer”, disse ele, parado, e feliz, enquanto os meninos faziam uma divisão – do que havia- graciosa de se ver.
Demos o dinheiro ao rapaz: sabíamos que, talvez, não era para a sardinha. Talvez fosse procurar o que o fazia aliviar das dores da vida que não queria.
Seguiu rua fora, na direção do sol sábio de Benguela, sob passos, atrapalhados, incertos de encontar um destino.
O rapaz dos dedos finos que falava gíria, e gritava como um louco, remetia os meninos para o silêncio das pessoas boas que acreditam e precisam ser felizes.
Os seus rostos contraíam-se numa representação de acato – com os olhos distraídos de pestanejar – enquanto o seguiam.
Era curioso observar o contraste do sossego dos meninos bons, dos olhos limpos, de corações leves; e os modos desnorteados do rapaz dos olhos frios, que abrigava um coração vazio.
Enquanto fitava o rapaz perdido -da sardinha- e os meninos bons -das quitetas, na luz de um sol exaltado: distingui Angola.
Estávamos em Benguela, de fim-de-semana, em registo de passeio – o que, por breves instantes, nos tinha feito esquecer que estavámos em Angola.
A Angola que existe na medida do que desejamos que ela seja. Que se debruça sobre o que o nosso coração se fixa – como os corações, leves, dos meninos bons ou o coração, vazio, do rapaz perdido.
Cláudia Rodrigues Coutinho
Luanda, 6 de junho 2017
(texto publicado no site VerAngola)