Uma doce reconciliação com a vida e com os outros

O nosso dia

José Freitas

Ontem à noite o meu filho D. pediu-me para ouvir uma música, do seu tablet, que deu na aula de música, do dia de Salgueiro Maia.

Enquanto ouvíamos a canção “Grândola Vila Morena”  lembrei-me de um texto que escrevi em 2016 que fala do 25 de abril, de Salgueiro Maia, da desmotivação, do alheamento, dos jovens para as questões da nossa democracia. Da falta de interesse e vontade de votar.  Da falta de líderes corajosos, livres, responsáveis e maduros (de um modo geral).

Mesmo com alguns erros cometidos e desequilíbrios registados – próprios da nossa história e da constante medida de forças  entre diferentes lados do nosso país –  não faltou, neste dia, o sonho. Não faltou o empenho dos jovens e sua força de acreditar.

Assim, o dia 25 de abril é acima de tudo recordar a força das pessoas livres,  do rigor, da honestidade, do entendimento e da responsabilidade. É o dia da esquerda e da direita e das pessoas que lutam por um dia melhor e fazem por estar e respeitar.

É o dia do possível.

O nosso dia

Perguntei-lhe se sabia a razão de ser feriado. Ele hesitou, mas logo saltou da cadeira e disse:

-Já sei ! Já me lembro! É o dia do Salgueiro Maia, que era um capitão. É aquele senhor que está na estátua em Santarém, não é mãe?

A M. entrou na conversa: – O 25 de Abril foi o dia em que o capitão Salgueiro Maia, para combater a ditadura, foi para Lisboa com os seus homens e saíram de Santarém para lutar pela democracia e para as pessoas terem liberdade. E conseguiu!

O meu filho explicava-me que em Angola não era feriado, mas a escola iria fechar porque é portuguesa, e em Portugal, o dia 25 de abril é feriado.

Fiquei feliz com aquela nossa conversa. Os meus filhos entendiam a razão de não haver escola. Fiquei tentada a complementar as suas respostas, mas resolvi não o fazer. Deixei-os celebrar aquele dia com a leitura livre do que têm ouvido e experimentado.

Acompanhámos as celebrações através da distância e este olhar de fora tem-me feito refletir sobre o que significa, ou deve significar, para os dias e jovens de hoje, as comemorações do dia 25 de abril de 1974.

Às vezes tenho a sensação que as novas gerações, como a minha, sentem que é já repetitivo e enfadonho estar sempre a falar do 25 abril, da liberdade, dos cravos e da revolução.

Para quem sempre viveu em plena democracia, como eu, não faz a mínima ideia do que é essa coisa de não ter liberdade.

É impossível imaginar o que é isso, a quem nunca viveu. Nunca vamos saber como é, não poder expor as nossas ideias e agir livremente.

Para quem já nasceu ou viveu a maior parte da sua vida no tal Portugal livre, é difícil imaginar o que significa uma ditadura.

Para nós que já nascemos com esta liberdade, há apenas que vivê-la.

Mas para a vivermos de forma equilibrada temos de a saber interpretar e estimar. É uma liberdade que traz responsabilidade.

E esta é o desafio daqueles que não viveram a época do 25 abril: defender e praticar uma liberdade que cause participação e tolerância, em vez de indiferença e parcialidade.

Para os jovens de hoje, é espantoso pensar que o capitão Salgueiro Maia tinha apenas 29 anos. Na sua coluna militar saída de Santarém alguns homens que o acompanhavam eram ainda mais novos. Foi uma Revolução de jovens para jovens que não ficaram indiferentes e queriam ter direito à liberdade de viver num mundo aberto e plural.

Hoje temos esse mundo livre e global, mas muitos portugueses e em especial os jovens afastam-se cada vez mais da política e estão cansados de promessas falhadas e falta de bom senso. Não se conseguem identificar com a maioria dos nossos políticos.

A abstenção sobe de ato eleitoral para ato eleitoral, demolindo completamente o sentido da democracia e da sua conquista.

O voto desempenha a democracia e garante a nossa liberdade mas mesmo assim os jovens não consideram importante poder expressar a opinião através de uma escolha livre e imediata.

Entendo bem o descontentamento com alguns partidos e pessoas que depois daquele dia, nem sempre, alguns, têm conseguido estar à altura da grande missão de fazer cumprir as suas responsabilidades livremente. A nossa confiança está abalada e apetece não querer saber.

Os dias que se seguiram ao 25 de abril nem sempre foram (e são) marcados por decisões equilibradas, maduras e de consenso.

Os tempos de hoje anunciam um mundo diferente que desafia todos os dias as nossas maiores certezas, liberdades e seguranças. Mas não podemos desleixar o que gozamos de mais precioso (que aquele dia ajudou a erguer): a garantia de decidir e escolher livremente.

Temos, por isso, a responsabilidade e o compromisso de colaborar no avanço da nossa democracia, melhorando-a dia após dia, perseguindo o sonho que chefiou a vida de Salgueiro Maia e dos Capitães de Abril.

Salgueiro Maia foi o soldado português que, à frente de 240 homens e com 10 carros de combate se dirigiu a Lisboa e ocupou o Terreiro do Paço, enfrentou um regime ditatorial de quase 50 anos, cercou o Quartel do Carmo e obrigou Marcello Caetano a render-se, protegendo a sua honra.

A sua vida presta-nos uma lição.

Algumas pessoas podem não se interessar pelos seus atos ou achar estas comemorações repetitivas, outros podem celebrá-lo entusiasticamente, mas essas palavras e ações e tudo o que temos (de bom ou mau), só são possíveis com a liberdade de expressão e de decisão, que o capitão ajudou a fundar.

Por mim que nasci em 1977, vou continuar a comemorar o dia 25 abril de 1974.

Vou continuar a sentir orgulho de votar e vou continuar a acreditar na política e na participação cívica com pessoas íntegras e livres, como Salgueiro Maia, o era.

É, pois, assim que devemos celebrar este dia.

O dia em que Salgueiro Maia se apresentou com dignidade a Marcello Caetano. O dia em que também ele estava desiludido mas não desistiu. O dia em que a base do consenso e do respeito restituiu a liberdade de sermos livres de falar, livres de pensar e livres de agir.

É por isso que não me importo que os meus filhos apropriem o feriado do 25 abril, como o dia do Capitão Salgueiro Maia. E é sim. É o dia dele. É o dia das suas certezas e razões. É o dia do bom senso, da coragem, da abnegação, da dignidade, da esperança e da humilde.

É também o meu dia. É o dia dos meus filhos. É o dia dos que acreditam. É o dia dos que sabem ser livres. É o dia dos que se importam e realizam. É o dia dos que não desistem. É o nosso dia. É o dia da democracia.

Cláudia Rodrigues Coutinho, Luanda 29 de abril de 2016

in Rede Regional

Fotos de José Freitas | Santarém