Uma doce reconciliação com a vida e com os outros

O som da buzina

Carlos Pinhão Coutinho (Namibe, 2019)

Continuei o caminho para casa mas não a larguei.

Guardo a sonoridade daquela buzina. Para sempre.

Não costumo escrever sobre as viagens que faço porque me atraso a terminá-las. Julgo, até, nunca as acabar. Desde o momento em que conheço e entro num lugar novo que não deixo de lá ficar. Acho que quando entro já não saio. Retenho cada paisagem diferente e distingo as pessoas novas, infindavelmente.

Das viagens por dentro de Angola: decidi partilhar os lugares por onde vou entrando e conhecendo.  Vou contar-vos os lugares desta terra através das minhas palavras escritas e pessoais e através do meu olhar aberto e crédulo.

Sentei-me para começar a escrever sobre o primeiro destino de carro para fora de Luanda. Até lá só tinha ido até Cabo Ledo.

O batismo aconteceu na viagem para as quedas de água de Kalandula, uma das maiores de África, na província de Malanje (Duque de Bragança, nome colonial), que fiz com uns amigos.

Inesperadamente um pensamento insistente desviou-me para uma outra viagem, desta Páscoa, em terras de Angola.

No regresso para casa, nessa viagem, tivemos de parar numa estrada principal  na passagem pela província do Sumbe. A manobra de inversão de marcha de um grande camião bloqueava o caminho dos carros que seguiam na nossa direção e bloqueou-nos o caminho.  

Enquanto parados no trânsito surgiu um som de uma buzina que embora frouxa parecia bem convicta. Aquele barulho entoava de forma cada vez mais veemente, estrada fora.

Inicialmente, imaginei tratar-se da falta de paciência de alguém. Mas a grande insistência daquela buzina, que eu não estava a conseguir identificar, começou a anunciar-me uma certa aflição.

Já com trânsito a correr normalmente surgiu-nos na frente do carro de forma inesperada uma pequena mota que carregava três pessoas, bem apertadas e juntinhas, sem capacete.

Enquanto nos ultrapassava a mota buzinava na proporção da pressa que trazia. Na tentativa de entender o motivo daquele alarido desvendei uma mulher que agarrava  a cabeça pendente da menina sentada à sua frente. Percebi o corpo desfalecido de uma menina que se mantinha hirto na mota devido ao esforço da mulher que a agarrava e apertava contra o motorista.

Na incessante leitura daquele cenário vi a mota diminuir de tamanho afastando-se da vista, numa pressa cada vez maior. O som da buzina, que avisava a procura de uma ajuda urgente, desvanecia-se na distância.

Ficou o silêncio de um enorme aperto que me fez arder o coração. As lágrimas chegavam numa feição inesperada e dolorosa, que eu não esperava e conseguia mandar. Eram lágrimas pesadas – custosas de secar – que me caiam numa imposição súbita, disfarçadas nos óculos de sol.

Era uma imposição provocada pela placidez de três pessoas a correr, numa mota, contra o tempo que indagavam a sorte numa direção incerta, injusta e frágil. 

Até hoje tento adivinhar o que encontraram no fim daquele percurso totalmente entregue ao destino. O que os esperava?

Não sei.

Não sei o que aconteceu à menina. Não sei sobre a sorte que encontrou naquela moto que buzinava, aflita de ajuda. Não sei sobre a angústia da mulher que lhe firmava o corpo inerte. (Talvez a mãe). E nem do motorista da mota que a guiou e apitou no máximo que conseguia.

Nunca irei saber.  (Segui em frente).  

Mas sei que é real.  

Talvez seja isso que me fez abalar no rumor daquela buzina. Às vezes a realidade é dura e custa enfrentar.

Cláudia Rodrigues Coutinho

Luanda, 27 de abril 2019