Este verão conheci o senhor Albertino.
E às vezes há surpresas assim.
Andamos às voltas com os maiores planos para os melhores momentos: viagens maravilhosas, a água mais azul e quente, as maiores cidades, os melhores restaurantes, os melhores hotéis, grandes experiências, a pessoa reconhecida..
Acho que foi dos momentos mais simples e surpreendentes, dos últimos tempos, numa viagem que fiz com a família, este verão, ao norte do nosso país : sem grandes voltas e sem grandes planos alcancei a maior experiência que me foi dada pela pureza da natureza, o respeito p`lo tempo – e a sua rápida passagem.
Num desses dias, desta nossa viagem, escolhemos visitar Rio de Onor, uma aldeia típica transmontana, longe de tudo e cercada pela beleza intransponível do parque nacional de Montesinho. Pinheiros, carvalhos, castanheiros, o cheiro a rosmaninho a pairar no ar: tudo quieto num silêncio que acorda os sentidos.
Assim que cheguei a este lugar vislumbrei as janelas e as casas escuras de xisto. Muitas abandonadas, em ruínas. As varandas de madeira, no andar de cima, onde moram as pessoas, e em baixo o sítio para o gado. As ruas estreitas de pedra, a ponte resistente dos romanos, a igreja pequena de xisto e o cemitério ao lado, o rio..
Numa das ruas, no instante em que me focava no rio, vi um senhor a passar por mim, vagarosamente, indiferente. A tranquilidade daqueles passos e a serenidade da sua sombra a pairar nas pedras cansadas daquela estrada fez-me ficar suspensa nos seus movimentos, acompanhando o seu caminho, passo a passo, minuto a minuto.
Ia no caminho da placa que ali apregoava, mesmo a duas passadas, a chegada a Espanha, à aldeia de Rihonor de Castilla. Desapareceu da vista.
Voltei-me, então, para a raridade do rio Onor, bem ali parado à minha frente, a atravessar a aldeia, lindo de morrer, límpido e feliz. A magnitude do seu silêncio e a preciosidade daquela água calma envolveram-me como nunca.
Sentia a profundidade de um lugar tão livre e autêntico.
Respirava-se um ar puro, tão puro e intenso ao ponto de me fazer parar no tempo para registar, na memória, uma tal simbiose perfeita entre a natureza e eu.
O senhor indiferente, vagaroso, regressou da vizinha Espanha, num ritmo seu. Sentou-se num muro de pedra que ali havia na estrada, de chapéu na cabeça e bengala de apoio, a descansar do sol que ofuscava.
Sentou-se, simplesmente, no seu assento, a saber esperar, ver e sentir o que podia e queria, pacientemente.
Sem meias medidas, deixei o rio, mesmo ao lado, e fui sentar-me onde senti ser o meu lugar.
Afinal, para ver bem aquela aldeia devia sentir em pleno o que ela é, na sua essência.
Perguntei-lhe o nome e ficámos à conversa sobre a sua vida e a aldeia.
Contou-me do gado comunitário, das festas, do que tinha sido e já não era; e no meio da nossa conversa, de vez em quando, o senhor Albertino olhava para mim.
Ao ver a minha expressão apressou-se a explicar que gostava muito de viver ali. Embora tenham saído muitos, e se tenham perdido outros tantos hábitos, levava uma vida simples e calma – que era a sua.
É engraçado que de vez em quando, quando dou por mim, ainda o sinto a olhar para mim, sentado bem perto, no muro de pedra, a descansar, quieto.
Ao meu lado estava quem aceita o tempo e o sabe usar sabiamente; quem o respeita e o sente numa tal simplicidade de um eterno equilíbrio com a vida.
Às vezes há surpresas assim.
Com momentos plenos e cheios (de sentido).
De tempo bem vivido.
Rio de Onor, Portugal, 2019
Cláudia Rodrigues Coutinho
Santarém, 24 de novembro de 2019