Uma doce reconciliação com a vida e com os outros

A principal lição de 2019: o que define a forma como olhamos as coisas?

Luanda, Bairro Azul, 2019

O que é que define a forma como olhamos e sentimos a vida?

(Balanços de um final de ano)

 

Seguindo este espírito do final do ano, tempo de reflexões e balanços, apeteceu-me escrever sobre a principal lição que entendi ter tirado, neste ano de 2019.

A conclusão das conclusões, ou a moral da história, de um ano que ficou marcado pela minha partida de Angola e regresso a Portugal, consiste, simplesmente, na confirmação de que a forma como vemos, interpretamos e enfrentamos, as coisas, a vida, espelha, nem mais nem menos, aquilo que somos e aquilo que conseguimos ser, em determinadas realidades.

Lembro-me do portão verde escuro a ser fechado pela última vez. Deixei de o abrir para sempre. Deixei de o ver e deixei de o abrir todas as manhãs; assim como as caras amigas das zungueiras que ali ficavam sentadas em frente, de rostos vagamente necessitados e altamente cheios.

E foi nesta ausência de vista que compreendi que a maneira como eu senti e olhei para a realidade, do lado de fora do meu portão, verde,  bem oposta à minha, obedeceu simplesmente à medida daquilo que eu consegui ser, ali.

Temos a tendência para pensar que somos realistas e objetivos na forma como analisamos o que se passa à nossa volta, e os outros. Mas na verdade o formato do nosso olhar para o mundo e para os outros não é mais nem é menos o desenho do que somos, e de como fomos ensinados a olhar.

Quando observamos os mesmos factos e as mesmas realidades, há lugar a uma interpretação que é, nem mais nem menos, consequência das próprias vivências, individuais, de cada um de nós.

Os nossos comportamentos, atitudes e perceções, resultam das influências recebidas pelas origens de cada um, que acabam por definir as nossas consciências, as nossas escolhas, o “nosso” certo e o “nosso” errado , e o nosso modo de ser.

Com a consciência plena dos nossos padrões e da forma como somos influenciados pelas nossas experiências de vida estaremos em melhores condições de questionar o que vemos.

Assim, o que vos posso atestar aqui, em modo de moral da história deste ano, é que não podemos olhar, julgar, ou tentar modificar os outros, que são diferentes de nós, sem primeiro considerar as realidades, as motivações, razões, tradições,  hábitos ou os princípios pelos quais os outros se regem.

Nesta lógica, garanto-vos que senti Angola, e o seu imponente continente, na razão daquilo que é a sua verdade, a sua história e as suas influências, e no esboço do que consegui ser, sem interpretações e avaliações fáceis.

E não quer dizer que quando concebemos realidades menos certas as poderemos estar a esconder, ou a amaciar. Também não quero dizer que temos de gostar, da mesma forma.

Quer dizer que as duas realidades existem: a nossa, que resulta daquilo que somos; e a outra, que resulta daquilo que os outros são.

O modo como vemos resumirá, decerto, o que somos; e o que somos estabelecerá a feição do que reside à nossa volta.

E ninguém conseguirá avaliar quem está certo ou errado pois não se pode dar como inquebráveis factos que podem não estar a ser bem entendidos.

E julgo que também não é isso que devemos procurar.

Devemos, simplesmente, olhar.

E conceder como verdadeiros os factos interpretados à luz da própria realidade que estamos a confrontar. 

Luanda, Bairro Azul, 2019

Cláudia Rodrigues Coutinho

Santarém, 29 dezembro 2019