Sobre a arte de Viver em África e de escre(Ver) em Angola (I)
Ali continuei, durante um tempo, parada, a olhar para as suas expressões. Estavam eufóricos e contavam, um ao outro, dos seus danos. A L e o C relatavam os acontecimentos da noite anterior, enquanto sorriam. Era uma ligeireza e uma placidez.
O C reparou que eu os observava: “Quando chove em Luanda ninguém dorme, D. Cláudia: temos de ficar acordados a noite toda para proteger as nossas casas. Temos tudo molhado. Nos bairros é assim”.
Não conseguia parar de olhar para eles e enquanto os ouvia pensei como seria se fosse eu.
A comparação que fazemos com a nossa realidade é inevitável e é aqui que a terra ocre nos toca, profundamente. Largar a habilidade de ajuizar porque assim que se compreende o julgamento acaba e sustemo-nos na sublime singeleza de tudo.

As zungueiras-guerreiras alinham meticulosamente os ananases nos alguidares de levar à cabeça. Conversam sentadas nos passeios; correm no encalço do cliente; brincam com as crianças- cansadas das costas; amamentam a andar; dormitam no pano, pra sonhar. Os meninos crianças carregam a água à cabeça. As mulheres trabalham o sustento da família e andam e pelejam, todo o dia, de um lado para o outro. Um homem descalço procura nos restos do lixo o que perdeu e precisa. Uma multidão de gente conversa no quintal: é mais um óbito. O mais velho procura-me na janela do carro: direto, aberto e ligeiro pede-me qualquer coisa. Uma menina atravessa a passadeira e enquanto rasteja no chão segue caminho, sem vacilar. Fazem-se unhas, arranjam-se cabelos. Namoriscam, brincam, perdem, encontram, bulham, dançam, suportam, festejam, inventam e agradecem.
Ora os nossos olhos reagem húmidos de estranheza, e resignação, ora enxugam de admiração.
Chegou a altura de ser clara acerca do que se sente sobre a arte de viver em África e de escrever em Angola.
Há uma coisa que todos sabemos sobre as pessoas do mundo. Todos queremos ser felizes. Mas a forma como imaginamos essa felicidade varia de pessoa para pessoa.
Dizem que se estamos felizes estamos gratos. Mas será que todas as pessoas felizes são gratas?
Se conhecemos tantos que têm tudo para serem felizes e não o são também há aqueles (e são aqui tantos) que passam por contrariedades que ninguém gostaria de passar e são interiormente felizes.
Se este berço do mundo é o dono de tamanhas injustiças, limitações e padecimentos é também o mestre do agradecimento.
Os sorrisos inesperados que vemos brilhar nas faltas é surpreende.

Claro que não são gratos pelas tristezas, pelas iniquidades, pelas chuvas que abalam as casas, ou pelas faltas diárias que suportam. Mas agradecem, pacientemente, por cada momento que lhes é dado.
Aproveitam a oportunidade de cada instante porque sabem que é único e irrepetível. Por isso agradecem, sempre. Não agradecem de vez em quando.

As adversidades transformam-se em oportunidades porque prosseguem e esperançam sempre. Prosseguem e agradecem sempre.
Nas retas infindas de África, nos rostos valentes das ruas severas de terra vermelha, e na simplicidade das vidas alvoraçadas por um sol ardente e uma chuva veemente afirmamos o verdadeiro poder de África.

Em África é a gratidão que traz a felicidade.
Distinguem-se as pessoas que são gratas das que vivem em gratidão.
Porque param. São pacientes, confiantes, e reconhecidas pelo presente da vida. Sempre.

Cláudia Rodrigues Coutinho
Luanda, 29 março de 2019
(texto publicado no site VerAngola)
Fotografias da autoria do José Silva Pinto que tem um olhar especial: romântico, real e humano. “Fotografias com gente lá dentro”.
Admiro o seu trabalho.
Vivi 5 anos em Luanda. E sempre que leio o que escreve revejo os meus pensamentos e emoções….África encanta, ensina, emociona e alegra. É sempre um prazer ler o que a Claudia escreve.
Obrigada, Sandra. Continue aqui com as suas partilhas. Este lugar é seu.
Admiro a pureza desta escrita que emerge da experiência vivida e que se alia a suavidade descritiva !
Renovados Parabéns Cláudia !
Obrigada, Dr. João Madeira Lopes. E eu admiro a genuinidade da sua forma de estar e de ser. É um privilégio senti-lo por perto. Por favor continue sempre. Um bem-haja!
Mais uma vez parabéns pela qualidade da tua escrita. Tem muita sensibilidade matizada pelo momento que vives. No entanto, parece-me que esbanjas muito os temas. Tens neste texto, muitas estórias por contar e crónicas por desenvolver, no entanto a tua ansiedade de as reproduzires misturas todas, e embora saindo uma compilação bonita e muito sensitiva, desperdiças textos que poderiam ser desenvolvidos e dariam outras estórias bonitas.Leio em ti um misto de Mia Cotto e de Água Lusa a que dás um teu toque próprio de sensibilidade. Estás apta a dar-nos a felicidade de ler-mos o teu primeiro livro de crónicas e contos africanos. Vai em frente!!!
Dr. Renato, obrigada pelas suas considerações tão pertinentes. É incrível como consegue ser tão assertivo e tocar naquilo que eu sinto. Ajuda-me a melhorar e a ver o que não considerava. Concordo com o comenta. Na minha ânsia de abordar o que se sente acabo por não ser concisa e totalmente eficaz. Vou ter isso em consideração. Por favor continue sempre, aqui. É um verdadeiro privilégio e gosto. Obrigada!
Só hoje e por mero acaso aqui tropecei e ainda bem, porque por bem, parei, li e “escutei” com olhos de ver, todo um cenário que no imaginário de um Africano, se revê do outro lado do pano. Compreendo assim plenamente todo o reboliço que vai em mente que não mente, porque assente em um querer insondável de tudo querer escrever em um pequeno espaço, que no espaço pequeno da vida se torna apetecida para que não perdida. Também sinto e pressinto tudo isso quando estou a escrever, mas é isso a essência da essência da verdade, a verdade da liberdade do Ser… Agradecido por tudo isto ter lido…
Por favor continue com a sua partilha de palavras especiais e verdadeiras – tão vivas e cheias de cor.
Muito obrigada. Gostei muito.